O texto a seguir, do humorista português Ricardo Araújo
Pereira (1974), não faz rir, mas traz uma reflexão interessante sobre o riso.
[...]
Os guardas foram buscar o prisioneiro para o levar ao
pátio onde ele seria executado. No caminho entre a cela e o cadafalso, o
prisioneiro foi a rir à gargalhada.
Conhece esta história?
É provável que não, porque nunca aconteceu. Seria uma ocorrência
mesmo muito estranha. Mas faz lembrar qualquer coisa: é a nossa vida.
Nós
sabemos que vamos morrer (desculpem, talvez eu devesse ter dito: (spoiler
alert ) – ou seja, temos consciência de que vamos a caminho do cadafalso –
e, no entanto, rimos durante o caminho.
Quando alguém pergunta “está rindo de quê?” espera sempre
que quem responde reconheça que não há motivo para rir. Está rindo de quê? o
meu chapéu não é assim tão ridículo, a minha queda não foi tão engraçada, o meu
erro não dá vontade de rir.
Ora, a resposta à pergunta “Está rindo de quê? É sempre:
estou rindo do fato de não ter qualquer motivo para rir.
É
disso que o prisioneiro – e nós – rimos.
Quem
tem motivo para rir, como é óbvio, não ri. Por exemplo, Deus criou o mundo, e
qualquer crítico de arte é forçado a reconhecer que se trata de uma obra bem
interessante, cheia de boas ideias.
O mar:
lindo. Montanhas: que beleza. ´Arvores: que conceito estranho, mas tão bem
conseguido. [...]
Continua
a ser a meta a ultrapassar por artista de todos os tempos e lugares. Porém, e
talvez por isso, Deus não ri: só ri quem não tem motivo para rir. Quem ri mais:
pobre ou rico?
Pobre,
claro. Precisamente por não ter motivo.
O
escritor português Gonçalo M. Tavares comparou a vida a uma queda.
A
metáfora não é nova, mas ele foi específico: estamos todos a cair de um 40º
andar. Os nossos corpos vão percorrendo o espaço vazio até ao fim inevitável, e
vamos juntos, mas sozinhos, ao mesmo tempo.
Nesse
processo, de nada adiante sermos fortes, inteligentes ou belos. A nossa força,
beleza e inteligência não tem qualquer préstimo – nem para nós nem para os outros.
Mas a
capacidade de fazer rir, não sendo capaz de evitar aqueda, torna o percurso
menos difícil. Não é muito. Na verdade, é quase nada.
Mas é o
que há. É uma missão nobre, fazer rir. Boa queda para todos.
PEREIRA,
Ricardo Araújo. Está rindo de quê? Folha de S. Paulo. 16 dez. 2018
Disponível
em : https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ricardo-araujo-pereira/2018/12/esta-rindo-de-que.shtml.
Acesso em 30 maio 2019.
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