segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

ESTÁ RINDO DE QUÊ?

 

             O texto a seguir, do humorista português Ricardo Araújo Pereira (1974), não faz rir, mas traz uma reflexão interessante sobre o riso.

[...]

             Os guardas foram buscar o prisioneiro para o levar ao pátio onde ele seria executado. No caminho entre a cela e o cadafalso, o prisioneiro foi a rir à gargalhada.

             Conhece esta história?

             É provável que não, porque nunca aconteceu. Seria uma ocorrência mesmo muito estranha. Mas faz lembrar qualquer coisa: é a nossa vida.

Nós sabemos que vamos morrer (desculpem, talvez eu devesse ter dito: (spoiler alert ) – ou seja, temos consciência de que vamos a caminho do cadafalso – e, no entanto, rimos durante o caminho.

             Quando alguém pergunta “está rindo de quê?” espera sempre que quem responde reconheça que não há motivo para rir. Está rindo de quê? o meu chapéu não é assim tão ridículo, a minha queda não foi tão engraçada, o meu erro não dá vontade de rir.

             Ora, a resposta à pergunta “Está rindo de quê? É sempre: estou rindo do fato de não ter qualquer motivo para rir.

É disso que o prisioneiro – e nós – rimos.

Quem tem motivo para rir, como é óbvio, não ri. Por exemplo, Deus criou o mundo, e qualquer crítico de arte é forçado a reconhecer que se trata de uma obra bem interessante, cheia de boas ideias.

O mar: lindo. Montanhas: que beleza. ´Arvores: que conceito estranho, mas tão bem conseguido. [...]

Continua a ser a meta a ultrapassar por artista de todos os tempos e lugares. Porém, e talvez por isso, Deus não ri: só ri quem não tem motivo para rir. Quem ri mais: pobre ou rico?

Pobre, claro. Precisamente por não ter motivo.

O escritor português Gonçalo M. Tavares comparou a vida a uma queda.

A metáfora não é nova, mas ele foi específico: estamos todos a cair de um 40º andar. Os nossos corpos vão percorrendo o espaço vazio até ao fim inevitável, e vamos juntos, mas sozinhos, ao mesmo tempo.

Nesse processo, de nada adiante sermos fortes, inteligentes ou belos. A nossa força, beleza e inteligência não tem qualquer préstimo – nem para nós nem para os outros.

Mas a capacidade de fazer rir, não sendo capaz de evitar aqueda, torna o percurso menos difícil. Não é muito. Na verdade, é quase nada.

Mas é o que há. É uma missão nobre, fazer rir. Boa queda para todos.

PEREIRA, Ricardo Araújo. Está rindo de quê? Folha de S. Paulo. 16 dez. 2018

Disponível em : https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ricardo-araujo-pereira/2018/12/esta-rindo-de-que.shtml. Acesso em 30 maio 2019.